Em alta

Como o Anzhi, pequeno clube da Rússia, tentou surpreender o mundo (mas falhou miseravelmente)

O Anzhi, em sua época estrelada (Foto: Divulgação)

O Anzhi Makhachkala, clube originário da república russa do Daguestão, passou por uma trajetória tão meteórica quanto dramática ao longo das últimas décadas. Fundado em 1991, o clube viveu anos de relativo anonimato até que, em 2011, foi adquirido pelo bilionário Suleiman Kerimov, que injetou centenas de milhões de dólares na equipe com o objetivo de transformá-la em uma força no futebol europeu. Essa era de altos investimentos trouxe grandes estrelas como Samuel Eto'o e Roberto Carlos, colocando o clube sob os holofotes globais. No entanto, o sonho rapidamente deu lugar à realidade dura dos negócios do futebol, e em poucos anos, enfrentou uma série de problemas financeiros, culminando em sua falência e perda do status profissional. O Anzhi, que uma vez foi sinônimo de ambição desenfreada, hoje é um exemplo de como o sucesso fugaz pode se transformar em queda abrupta no mundo do esporte.

O COMEÇO DE TUDO

(Foto: Alchetron)

O Football Club Anzhi Makhachkala foi fundado em 1991 pelo ex-jogador Aleksandr Markarov. Em seu primeiro ano de existência, participou da Liga do Daguestão, na qual foi campeã, vencendo 16 dos 20 jogos disputados.

Com o fim da União Soviética, o Anzhi passou a disputar a terceira divisão russa em 1992, terminando em quinto lugar. Após conquistar o vice-campeonato em 1996, o clube garantiu acesso à segunda divisão. Em sua primeira temporada, ficou no meio da tabela, ocupando a 13° colocação. Um jogador fundamental nesses anos iniciais do time foi o atacante Ibragim Gasanbekov, que, em duas oportunidades terminou na artilharia da segundona, em 1993 e 1996, anotando 30 e 33 gols, respectivamente. No entanto, a carreira do jogador foi interrompida em 1999, quando sofreu um acidente de carro e faleceu aos 29 anos.

Na temporada 1999, o clube sagrou-se campeão da segunda divisão, com isso, pela primeira vez em sua história, disputaria a Premier League Russa. Em seu primeiro ano na elite, o Anzhi fez bonito: com 52 pontos conquistados, terminou na quarta posição. Destaque para Predrag Ranđelović, artilheiro do time com 12 gols.

Após uma sólida campanha na Premier League em 2000, no ano seguinte, o clube finalizou o campeonato apenas em 13° lugar, quatro pontos à frente do Fakel Voronezh, primeiro time na zona de rebaixamento. Na Copa da Rússia, surpreendeu e chegou até a decisão contra o Lokomotiv Moscou. Apesar de ser derrotado nos pênaltis por 5 a 4, nem tudo foi tragédia. Como o time da capital foi vice-campeão da Liga Russa, o Anzhi herdou uma vaga para disputar a Copa da UEFA. 

Participando de uma competição europeia pela primeira vez em sua história, o Anzhi não foi muito longe, sendo eliminado logo no primeiro playoff. Por estar situado no Daguestão, uma zona de muitos conflitos, a partida contra o Rangers foi transferida para Varsóvia, na Polônia. Além disso, foi realizado apenas um jogo, sem o confronto da volta no Ibrox Stadium. Em campo neutro, diante de 4.200 torcedores, os escoceses venceram por 1 a 0, com gol do zagueiro Bert Konterman.

Em 2002, após dois anos na elite, o clube acabou sendo rebaixado, depois de terminar em 15° lugar na liga. A volta à primeira divisão só ocorreu em 2010. Em seu retorno à Premier League, ficou na 13° posição. Porém, foi a partir de 2011 que a história passaria a mudar no Anzhi.

OS INVESTIMENTOS

(Foto: Divulgação)

Suleyman Kerimov é um bilionário russo de origem do Daguestão. Nascido em 1966, fez sua fortuna nos setores de energia e mineração. Com uma vasta riqueza acumulada, ele comprou o Anzhi em 2011, com a ambição de transformar o clube em uma potência europeia. Sob sua gestão, foram feitos uma série de altos investimentos, contratando nomes consagrados, além de jovens jogadores, com muito potencial.      

O novo proprietário prometeu investir mais de 200 milhões de dólares em infraestrutura, além da construção de um novo estádio, que comportaria mais de 40 mil torcedores e atenderia a todos os requisitos da UEFA – no final das contas, não houve estádio novo, apenas uma modernização da Anzhi Arena, com sua capacidade sendo ampliada para 26.500.

A primeira grande contratação foi o brasileiro Roberto Carlos, que veio sem custos do Corinthians. Os brasileiros Jucilei e Diego Tardelli também chegaram ao clube, juntamente com o promissor Moubarak Boussoufa, do Anderlecht.

Mas foi na janela do meio de temporada que Kerimov mostrou não estar para brincadeira. Mehdi Carcela-González, Balász Dzsudzsák, Christopher Samba e Yuriy Zhirkov desembarcaram na Anzhi Arena, totalizando quase 50 milhões de euros em transferências. A grande contratação foi anunciada em 23 de agosto. Por 27 milhões de euros, Samuel Eto’o trocou a Inter de Milão pelo Anzhi e, além disso, receberia o maior salário do futebol mundial – algo em torno de 20,5 milhões.

Em campo, a situação foi meio turbulenta, com o treinador Gadzhi Gadzhiyev sendo demitido em setembro, após uma vitória nos últimos seis jogos, deixando o time na sétima posição. Roberto Carlos, juntamente com o assistente Andrei Gordeyev assumiu como interino. No final de dezembro, houve a bizarra passagem de Yuri Krasnozhan, que durou apenas dois meses e não comandou a equipe em nenhuma partida. O experiente Guus Hiddink veio para colocar ordem na casa e levou o Anzhi à quinta posição, garantindo os Águias na segunda eliminatória da Liga Europa. Na Copa da Rússia, uma eliminação nas oitavas de final, diante do Dinamo de Moscou.

Para a temporada 12/13, o clube inaugurou sua academia de juniores, a primeira no Daguestão, com o objetivo de revelar jogadores para o time principal e seria supervisionado por Jelle Goes, ex-coordenador de base no PSV, além de ter passagens como técnico pela Estônia e no time B do CSKA.

Os reforços não pararam de chegar. Por 18 e 5 milhões de euros, respectivamente, foram contratados Lacina Traoré e Lassana Diarra. Além disso, mais um grande nome estava prestes a ser anunciado. O brasileiro Willian, que estava no Shakhtar Donetsk, chegou ao clube russo por 35 milhões de euros, sendo a contratação mais cara daquela janela de transferências.

Em seu retorno às competições europeias, o Anzhi não teve problema nos playoffs e atropelou todos os seus adversários. Eliminou o Budapest Honvéd, Vitesse e AZ Alkmaar. Com isso, entrou no grupo A, ao lado de Liverpool, Young Boys e Udinese. Avançou em segundo lugar, com dez pontos, mesma pontuação dos ingleses. Nos 16 avos, despachou o Hannover 96, mas foi eliminado na fase seguinte para o Newcastle, perdendo de 1 a 0 no placar agregado.

Na Liga Russa, a equipe teve um grande início de temporada, com apenas uma derrota nos primeiros 12 jogos e ocupava a liderança. Porém, no segundo turno, o desempenho caiu, terminando em terceiro lugar, que garantiu novamente uma vaga na Liga Europa. Na Copa da Rússia, chegou até a decisão, mas foi derrotado nos pênaltis por 5 a 4 para o CSKA.

O DESASTRE

(Foto: Divulgação)

Os principais investimentos para a temporada 13/14 foram dois jogadores russos. Aleksandr Kokorin e Igor Denisov chegaram por 19 e 15 milhões de euros, respectivamente. Também houve o retorno de Cristopher Samba, que estava defendendo o QPR da Inglaterra.

No entanto, a temporada começou de maneira desastrosa para o clube. Guus Hiddink pediu demissão, e seu auxiliar, René Meulensteen assumiu o cargo de treinador, que durou 16 dias até ser mandado embora. A equipe estava na zona de rebaixamento, não havia vencido nenhum jogo no primeiro turno do Campeonato Russo, além de ter sido eliminada logo de cara na Copa da Rússia pelo Alania.

Além dos resultados trágicos dentro de campo, Kerimov adoeceu após uma derrota em casa para o Rostov, pela quarta rodada da liga. Tudo isso foi o suficiente para que o bilionário se irritasse e colocasse todo o elenco à venda. Alguns dias depois, em nota divulgada pelo clube, foi anunciada uma mudança na política de gastos, devido ao Fair Play Financeiro. A prioridade agora seria o uso das categorias de base. Quanto aos grandes nomes, houve ainda uma alfinetada, afirmando que as conquistas esportivas não foram alcançadas e que o péssimo desempenho do time na temporada comprovava isso.

Kokorin sequer estreou, Denisov fez três partidas, e ambos foram vendidos ao Dinamo Moscou, juntamente com Zhirkov e Samba. Logashov, Boussoufa e Diarra rumaram ao Lokomotiv Moscou. Shatov foi para o Zenit. Traoré partiu para o Mônaco. O Chelsea levou Eto’o a custo zero e pagou 35 milhões de euros por Willian.

Com um time esfacelado, não deu outra. O Anzhi caiu como lanterna do Campeonato Russo, conquistando apenas três vitórias. Com 20 pontos somados, foi a pior campanha de um último colocado no futebol europeu naquela temporada. Na Liga Europa, ainda teve um pouco mais dignidade. Em grupo com Tottenham, Sheriff e Tromso, passou em segundo lugar, com oito pontos. Despachou o Genk nos 16 avos, mas foi eliminado nas oitavas pelo AZ Alkmaar.

Agora, sem grandes investimentos e na segunda divisão, o time somou 71 pontos, terminando com o vice-campeonato, que garantiu o retorno imediato à elite. Sobre o elenco, havia os brasileiros Ewerton e Léo Souza. Cria da base, o zagueiro Ali Gadzhibevok foi um dos poucos remanescentes e passou a capitanear a equipe. Destaque também para o marfinense Yannick Bolly, que veio por 600 mil euros do Zorya e acabou a temporada com 16 gols em 24 partidas.

Na elite, foram mais quatro temporadas, mas sempre brigando contra o rebaixamento, sendo que a melhor posição foi um 12° lugar. Alguns nomes conhecidos passaram no clube durante esse período, como o centroavante Hugo Almeida, de longas passagens por Werder Bremen e Besiktas, além de ter disputado duas Copas do Mundo com Portugal. Xandão, Jonathan Mensah, Gabriel Obertan, Lorenzo Ebecilio e Ivo Ilicevic também defenderam os Águias durante a primeira divisão.

O SILENCIOSO ESQUECIMENTO

(Foto: Divulgação)

Com o time totalmente largado, Kerimov vendeu o Anzhi para Osman Kadiev no final de 2016. O novo mandatário havia presidido outro time da cidade, o Dinamo Makhachkala. A promessa de Kadiev era desenvolver o futebol local e dar chance a atletas do próprio Daguestão. No comando técnico, já houve mudança, com o técnico Pavel Vrba e toda a sua comissão técnica sendo demitidos.

Com um novo proprietário, a torcida do Anzhi tinha, ao menos, a esperança de contar com um elenco mais competitivo, que não brigasse apenas contra o rebaixamento. Porém, no mês seguinte à conclusão da venda, já surgiram os primeiros problemas. Os salários estavam atrasados, e todos os jogadores foram autorizados a procurar outros clubes, sendo liberados de graça. Quem permanecesse, não teria garantia de receber o que estava em atraso.

A situação não foi bem explicada e, em um breve comunicado no site, os diretores afirmaram que estavam trabalhando em novos objetivos, incluindo as questões financeiras, por isso, a necessidade de negociar atletas. Também foi lembrado que frequentemente as equipes russas sofrem com problemas financeiros.

Na temporada 17/18, a equipe terminou em 14° lugar e precisou disputar um playoff contra o Yenisey, terceiro colocado da segunda divisão. No placar agregado, o Anzhi perdeu por 6 a 4, mas escapou do rebaixamento graças ao Amkar Perm, que teve sua licença profissional revogada e não poderia disputar as duas primeiras divisões do país.

Mesmo com a sorte ao seu lado e conseguindo permanecer na primeira divisão, o Anzhi realmente fez força para ser rebaixado. A queda foi consumada na temporada 18/19, quando terminou o campeonato na 15° posição. Com apenas cinco vitórias, somou 21 pontos, ficando distante 12 pontos do Dinamo Moscou, o primeiro fora da zona de descenso.

O rebaixamento era o calvário do Anzhi? Não, já que a situação ainda pioraria. Em maio de 2019, o diretor geral, Absalutdin Agaragimov, anunciou que o clube não havia conseguido o licenciamento da Federação Russa. Mesmo que coubesse recurso, eles não apelariam da decisão e ficariam fora da disputa da segundona. As opções restantes eram jogar a terceira divisão ou declarar falência.

Com um elenco extremamente jovem, o clube optou por jogar a terceira divisão. Com jogadores do sub-20 compondo a equipe principal, a média de idade era de 20,88 anos. Como era de se imaginar, a campanha foi péssima, terminando na penúltima posição – e só não foi rebaixada graças ao campeonato ter sido encerrado antes, devido a pandemia de COVID-19. Na temporada seguinte, ainda na terceirona, um pouco mais de sossego, ao ficar na sexta posição, com 51 pontos.

Durante a temporada 21/22, o Anzhi chegou a ocupar a liderança da tabela por cinco rodadas seguidas, mas não manteve o ritmo e terminou apenas na sétima posição. No entanto, os Águias foram punidos com a perda de seis pontos por causa das dívidas acumuladas e caiu para o nono lugar. Sem conseguir os requisitos mínimos para continuar na disputa da terceira divisão, o clube teve sua presença negada pela organização da liga e perdeu seu status de time profissional.

Afundado em dívidas e ao invés de seguir no futebol amador, o Anzhi optou por encerrar suas atividades ao final da temporada 21/22. O último jogo oficial foi diante do Rotor 2, uma vitória de 4 a 0, fora de casa, no dia 5 de junho.

Abaixo, o comunicado divulgado pelo clube.

“O Anzhi fez todos os esforços possíveis para garantir o licenciamento e esperava um resultado positivo. A administração entende a recusa e avalia as condições financeiras do clube. Todos os esforços foram feitos para pagar as dívidas. Infelizmente, sem o apoio de patrocinadores e parceiros, isso não foi suficiente.

O Anzhi agradece a todos que contribuíram para a história do clube. Obrigado a todos que acompanharam seu amado time ao longo dos anos e acreditaram fielmente no melhor. Gostaríamos de agradecer a todos os jogadores, treinadores e funcionários que representaram as cores do Anzhi com honra e dignidade, nos campos da Rússia e da Europa. Lembrem-se: enquanto o nome do Anzhi permanecer no coração dos torcedores, o clube viverá. Acreditamos que esse não é o fim e, um dia, o Anzhi retornará. Um dia essa estrela acenderá novamente e brilhará ainda mais.”

Veja o vídeo de despedida que o Anzhi postou em suas redes sociais.

Estéfano Butzge

Jornalista formado na Universidade Católica de Pelotas. Colecionador de camisas de futebol, torcedor do Internacional, Nottingham Forest e da McLaren na Fórmula 1. twitter

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem